Entrevista Emilia Ferreiro,
a psicolinguista que revolucionou a alfabetização
10.11.2015
"No
Brasil, aparentemente, está em curso uma mudança sensível em relação à
escolarização. Muito mais crianças e jovens em idade escolar estão nas salas de
aula. Esse é o primeiro passo. Agora, vem o mais importante: desafio da
qualidade, da aprendizagem. Não basta ocupar todas as carteiras. É preciso
ensinar."
Poucos
nomes tiveram mais influência sobre a educação brasileira nas últimas décadas
do que o da psicolinguista argentina Emilia Ferreiro. As obras de Emilia,
sendo Psicogênese da Língua Escrita a mais importante, revelam os
processos de aprendizado das crianças, levando a conclusões que puseram em
questão os métodos tradicionais de ensino da leitura e da escrita.
Emilia
Ferreiro se tornou uma espécie de referência para o ensino brasileiro e seu
nome passou a ser ligado ao construtivismo, campo de estudo inaugurado pelas
descobertas a que chegou o biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) na
investigação dos processos de aquisição e elaboração de conhecimento pela
criança - ou seja, de que modo ela aprende. As pesquisas de Emilia Ferreiro,
que estudou e trabalhou com Piaget, concentram o foco nos mecanismos cognitivos
relacionados à leitura e à escrita.
Tanto as
descobertas de Piaget como as de Emilia levam à conclusão de que as crianças
têm um papel ativo no aprendizado. Elas constroem o próprio conhecimento - daí
a palavra construtivismo. A principal implicação dessa conclusão para a prática
escolar é transferir o foco da escola - e da alfabetização em particular - do
conteúdo ensinado para o sujeito que aprende, ou seja, o aluno.
Com base
nesses pressupostos, a psicóloga e pedagoga argentina critica a alfabetização
tradicional, porque julga a prontidão das crianças para o aprendizado da
leitura e da escrita por meio de avaliações de percepção (capacidade de
discriminar sons e sinais, por exemplo) e de motricidade (coordenação,
orientação espacial etc.). Dessa forma, dá-se peso excessivo para um aspecto
exterior da escrita (saber desenhar as letras) e deixa-se de lado suas
características conceituais, ou seja, a compreensão da natureza da escrita e
sua organização. Para os construtivistas, o aprendizado da alfabetização não
ocorre desligado do conteúdo da escrita.
Em entrevista à revista Nova Escola, Emilia avalia a interferência das
inovações trazidas pela internet, fala sobre o papel dos professores em
comunidades mais pobres e sobre a transformação no significado de ler e
escrever através dos tempos. Ainda, reflete sobre as práticas que considera
cruciais na alfabetização. Confira abaixo:
No livro Cultura
Escrita e Educação, a senhora afirma que adora pesquisar e descobrir que
entendeu algo que a intrigava. O que a deixa intrigada atualmente?
Emilia Ferreiro: Continuo
tentando compreender melhor o funcionamento dos sistemas e das tecnologias de
escrita. Indagações surgem a respeito dos modos de comunicação e estilos que
estão sendo criados. Um exemplo é o chat, que parece um intercâmbio informal,
cara a cara, só que por texto. Outro é o e-mail, que não é uma carta em papel
nem um telegrama. Essas novas formas de diálogo possuem propriedades que não
conhecemos. São temas a ser pesquisados, assim como a interface entre a
aquisição da escrita com letras e com números...
Como isso
se dá?
Emilia Ferreiro: As duas são ensinadas simultaneamente porque a escola e
o ambiente pedem. Já conhecemos bastante o sistema de aquisição da leitura com
letras e a maneira de escrever números em situações vinculadas a representações
de quantidade. Quero averiguar como se descobre quando usar um ou outro. Quando
escrevo casa, leio casa e posso traduzir para house, se souber inglês. No
entanto, se escrevo 5, posso ler cinco ou five. Nesse caso não está escrito o
nome do número mas o sentido que ele passa. E esse sentido pode ser passado em
qualquer língua. Não posso redigir a palavra casa com números, mas a palavra
cinco posso escrever também com um algarismo. É interessante ver como crianças
muito pequenas, de 4 ou 5 anos, lidam com isso.
O
professor deve tentar desvendar problemas em seu dia a dia?
Emilia Ferreiro: Não. O ofício do pesquisador e o do professor são
distintos. Digo isso porque exerço os dois. Quando estou ensinando, minha
atitude sobre os problemas é diferente da que tenho quando estou pesquisando. É
importante ensinar os alunos a pesquisar, mas isso é parte de meu trabalho de
professora.
Mas não é
também papel do docente buscar novos conhecimentos?
Emilia Ferreiro: Com certeza. Só que isso é diferente de pesquisar.
Querer saber sempre mais deve ser próprio de qualquer profissional. Um médico
também tem de se atualizar e não se contentar com o que aprendeu na
universidade. Se não há uma certa inquietude em continuar descobrindo coisas
novas terminamos repetindo as antigas e o que era válido há vinte anos não
continua necessariamente bom hoje.
O
significado de saber ler e escrever também muda com o tempo?
Emilia Ferreiro: Usamos esses mesmos verbos na Grécia clássica, na Idade
Média, na revolução industrial ou na era da internet. Por isso, temos a
impressão de que designam a mesma coisa. O real significado, no entanto, vem se
modificando. Ambos têm a ver com marcas visuais, mas o que se espera do leitor
é determinado socialmente, numa certa época ou cultura. Na Antigüidade clássica
não se esperava o mesmo que no século XVIII, nem o que se espera agora.
O que
determina a eficiência de um leitor na era da internet?
Emilia Ferreiro: O trabalho na internet exige rapidez na leitura e muita
seletividade, porque não se pode ler tudo o que está na tela. E a capacidade de
selecionar não é algo que, há alguns anos, fosse uma exigência importante na
formação do leitor. No contexto escolar, não tinha lugar preponderante mesmo.
Na rede mundial de computadores, as páginas estão cheias de coisas que não têm
relação com o que procuro e existe a possibilidade de um texto me conduzir a
outros por meio de um click. Além disso, quando tenho um livro em mãos e o abro
em qualquer página, sei claramente se é o começo, o meio ou o fim. Quando abro
uma página na internet nem sempre tenho noção de onde estou.
Mas os
jovens têm facilidade para se adaptar a essas mudanças...
Emilia Ferreiro: Eles aprenderam a usar a internet sozinhos e
rapidamente, sem instrução escolar nem paraescolar. Eles conhecem essa
tecnologia melhor que os adultos os alunos sabem mais do que seus mestres.
Essa é uma situação de grande potencial educativo, porque o professor pode
dizer: "Sobre isso eu não sei nada. Você me ensina?" A possibilidade
de uma relação educativa realmente dialógica é fantástica. Mas o docente não
está acostumado a fazer isso e, num primeiro momento, fica com muito medo de
não poder ensinar. Em casa, ele recorre aos filhos. No espaço público, na
escola, ele tem mais dificuldades.
Além da
questão tecnológica, existe a da língua. A senhora acha que quem não souber
inglês será um analfabeto nesta era da internet?
Emilia Ferreiro: É preciso aprender o inglês, sem dúvida, mas não só
esse idioma. Nestes tempos de globalização, vemos ao mesmo tempo um movimento
de homogeneização (de um lado) e grupos que manifestam um desejo de manter a
própria identidade (de outro). As duas coisas estão funcionando
simultaneamente. No início da internet tínhamos a impressão de que ela seria
uma das tantas maneiras de converter o inglês na única língua de comunicação.
Hoje a situação mudou bastante. Há cada vez mais uma diversidade de idiomas na
rede. Temos duas direções a seguir: consultar somente sites na nossa língua ou
tomar consciência de que a rede nos dá acesso, por exemplo, a jornais escritos
em países distintos e procurar entendê-los.
Voltando
à alfabetização, o livro Psicogênese da Língua Escrita foi lançado no
Brasil em 1985 e causou uma revolução. Como a senhora avalia a repercussão da
teoria ali contida?
Emilia Ferreiro: As mudanças educativas são lentas. É muito fácil
transformar uma escola pequena, privada, que tenha desejo de evolução. Mas num
sistema educativo municipal ou estadual é mais difícil. Tendo em conta a
complexidade da realidade brasileira e levando em consideração que a difusão da
teoria não foi similar em todas as regiões, eu diria que já aconteceram muitas
coisas por aqui.
Quais as
mais significativas?
Emilia Ferreiro: No Brasil, havia uma espécie de obsessão em montar
turmas homogêneas. Tenho a impressão de que esse não é mais um problema. E se
isso realmente aconteceu, é um grande avanço. A homogeneidade é um mito que
nunca se alcança. Eu posso aplicar uma prova, dizer que vinte estudantes são
iguaizinhos e colocá-los todos juntos para trabalhar. Daqui a uma semana eles
não serão mais iguais, porque os ritmos de desenvolvimento são muito variados.
Uma coisa são os ritmos individuais, outra, as etapas de desenvolvimento.
Com
relação às etapas de desenvolvimento, você crê que sua importância já foi
assimilada?
Emilia Ferreiro: Num primeiro momento, houve apenas a troca de rótulos.
Os fracos passaram a ser chamados de pré-silábicos. Os que estavam no meio do
processo eram os silábicos e os que eram fortes foram classificados como
alfabéticos. Alguns anos depois ficou mais claro que os rótulos novos permitiam
ver de outra maneira o progresso das crianças, mostravam que elas estavam
aprendendo. É desesperador estar diante de um aluno e dizer "ele não
sabe", "ele ainda não sabe". Quando se pode visualizar as mudanças
como um progresso na aprendizagem, tudo muda. Primeiro porque o esforço de
aprender é reconhecido; segundo porque há a satisfação de ver avanços onde
antes não se enxergava nada.
Ainda
hoje chegam cartas à redação da Nova Escola perguntando qual a idade ideal para
iniciar a alfabetização...
Emilia Ferreiro: Constatei que, atuando de forma inteligente, pode-se
alfabetizar aos 5 anos, aos 6 ou aos 7. É preciso oferecer oportunidade para os
menores. Alguns vão aprender muito, outros nem tanto. A idéia de que eu,
adulto, determino a idade com que alguém vai aprender a escrever é parte da
onipotência do sistema escolar que decide em que dia e a que horas algo vai
começar. Isso não existe. As crianças têm o mau costume de não pedir permissão
para começar a aprender.
O que um
alfabetizador não pode deixar de fazer em classe?
Emilia Ferreiro: Ler em voz alta. Especialmente se as turmas forem
pobres, vindas de lugares em que há poucas pessoas letradas. Essa poderá ser a
primeira vez que ela passa por uma experiência assim. O texto, no entanto, tem
de ser bom e lido com convencimento. Esse aluno de 6 ou 7 anos vai presenciar
um ato quase mágico. Vai escutar um idioma conhecido e ao mesmo tempo
desconhecido, porque a língua, quando escrita, é diferente. Essa maneira de
trabalhar é muito melhor do que usar as cartilhas e as famílias silábicas.
As
cartilhas, aliás, já não são usadas como antigamente.
Emilia Ferreiro: Certa vez um editor brasileiro me acusou de estar
arruinando o negócio de cartilhas, e parece que ele tinha razão. Se tenho mesmo
relação com a queda na produção desses livros, estou muito orgulhosa. Eles eram
de péssima qualidade, horríveis, assustadores. Eram pura bobagem. Apesar disso,
há vinte anos parecia um sacrilégio, no Brasil, dizer que a família silábica
não era a melhor maneira de trabalhar. Tenho a impressão de que isso mudou e de
que esse é um caminho sem volta. Para ensinar a ler e escrever é necessário
utilizar diferentes materiais. Um livro só não basta. É preciso utilizar livro,
revista, jornal, calendário, agenda, caderno, um conjunto de superfícies sobre
as quais se escreve. A maneira como um jornal é redigido não é a mesma que se
encontra num livro de Geografia ou História.
Como deve
agir o professor em áreas rurais, onde o contato com a língua escrita é muito
menor?
Emilia Ferreiro: Ele não pode desperdiçar nem um minuto do tempo em que
sua turma está na escola, porque cada minuto é muito precioso. Terminado o
período da aula, o contato com a escrita quase desaparece, sobretudo se for
numa região em que não haja maquinários sofisticados, que exigem a leitura de
manuais, ou onde materiais impressos praticamente não existam.
Como a
senhora avalia a alfabetização na América Latina?
Emilia Ferreiro: A América Latina está conseguindo levar praticamente
todas as crianças para a escola, mas nem todas continuam estudando nem aprendem
algo que justifique sua permanência ali.
Ou seja,
ainda há o risco de o continente continuar formando analfabetos funcionais.
Emilia Ferreiro: Esse problema ocorre no mundo inteiro, ainda que com
nomes diferentes. Na França, por exemplo, há uma distinção entre o iletrado e o
analfabeto. Este não teve uma escolaridade suficientemente prolongada. O
primeiro teve essa oportunidade, mas não pratica nem a leitura nem a escrita.
Então, poucos anos mais tarde, lê com dificuldade e evita escrever. Países que
já resolveram o problema da escolaridade obrigatória têm iletrados; os que não
possibilitaram à população a escolaridade básica têm analfabetos.
O Brasil
encontrou o caminho para combater esse problema?
Emilia Ferreiro: No Brasil, aparentemente, está em curso uma mudança
sensível em relação à escolarização. Muito mais crianças e jovens em idade
escolar estão nas salas de aula. Esse é o primeiro passo. Agora, vem o mais
importante: desafio da qualidade, da aprendizagem. Não basta ocupar todas as
carteiras. É preciso ensinar.
(Via artigo e entrevista Nova Escola)